Psicóloga infantil fala sobre a importância de propiciar momentos que serão recordados por toda a vida
O cheiro de bolo saindo do forno que lembra as férias na casa da avó. A brincadeira de pega-pega que traz à memória as tardes divertidas com os primos. A pipoca no sofá em dia chuvoso que remete aos cinemas na sala de casa com a família. Quantas são as memórias afetivas que tomam não só as lembranças, mas também o coração. Essas recordações foram sendo criadas na simplicidade dos dias, enquanto a infância simplesmente acontecia. Essa fase da vida é um período mágico que permite, por meio do brincar e da imaginação, a construção de memórias afetivas cheias de significado que irão perdurar para sempre. Parte do que se vive quando criança irá ressoar dentro de cada pessoa no decorrer de toda a sua existência.
E como ficarão as lembranças afetuosas das crianças que estão vivendo este momento de pandemia que chegou num piscar de olhos e virou o mundo do avesso? De que maneira os pais podem contribuir para que a construção de lembranças seja positiva neste momento? Para esclarecer dúvidas a respeito deste tema e trazer considerações importantes nesta época em que as famílias necessitam se reinventar e, muitas vezes, buscar diferentes formas de interação com os filhos, O Peixinho preparou uma matéria exclusiva com a psicóloga infantil e orientadora de pais, Ana Paranzini.
Como você define as memórias afetivas?
Eu entendo que memórias afetivas são aquelas lembranças carregadas de sentimentos que as pessoas têm mesmo depois de passado um tempo. Geralmente, as memórias afetivas estão ligadas a sentimentos bons: de pertença de amor, de felicidade, de algo da interação entre duas pessoas. Este tipo de memória é carregado de carinho, é uma demonstração de que a pessoa de quem se lembra é importante. Por exemplo, uma criança que está ficando mais próxima dos pais neste período de quarentena e eles têm dado mais atenção para ela, têm conversado, têm feito mais coisas prazerosas de interação, vai criando memórias afetivas que são algumas lembranças que vão surgir depois, até mesmo na vida adulta, mas que virão com um significado de cuidado, de amor, de demonstração de afeto.
Há uma idade na qual as crianças começam a gravar os momentos como recordações e passam a transformá-los em memórias afetivas?
Em termos de idade, é muito difícil precisar isso porque em muitas situações há uma lembrança a partir do momento que a criança desenvolveu um repertório de comportamento verbal, quando ela sabe falar. E faz sentido a gente pensar dessa forma porque a memória nada mais é que uma recordação, uma narração, e a criança só consegue narrar um fato quando ela consegue descrevê-lo. Então, pode ser que uma criança ainda muito pequena, um bebê que ainda não desenvolveu todo o repertório do comportamento verbal, não vai ter essas lembranças com clareza e com precisão. Isso não significa que não tenha lembranças, pode ter uma sensação associada a algo bom, mas não consegue descrever. A partir do momento que a criança cresce e tem esse repertório verbal desenvolvido, já consegue nomear aquilo que está sentindo e vivenciando. Pode lembrar, por exemplo, que quando era menor, o pai a levava ao circo. Se é uma criança bebê, no entanto, não terá essa conscientização, portanto, não tem como ela ter a memória desse fato, ela vai ter uma sensação vivida muito mais no dia a dia, uma memória a curto prazo, do que uma memória a longo prazo. Mas independentemente da idade, a gente tem que proporcionar esse tipo de situação positiva para a criança.
Qual é a importância dessas memórias para a infância e para as demais fases da vida?
A gente sempre vê que todos esses momentos em que há uma disponibilidade afetiva do adulto que é responsável pela criança há uma associação entre aquela relação e algo positivo, algo prazeroso, uma sensação de cuidado. Essa é a importância de se desenvolver e estreitar esses laços proporcionando situações e momentos em que a criança se lembre com saudade, mas se lembre também com sentimento positivo que advém de tudo isso. Quando a gente cresce um pouco mais, ficam na memória tanto coisas positivas quanto coisas negativas, claro. Mas quando um adulto vai refletir sobre aquilo que aconteceu na infância dele, e foi uma criança que teve muitos momentos afetivos positivos, ele vai conseguir compreender melhor os momentos negativos. Vamos supor que a família passou por uma situação financeira difícil ou teve a morte de alguém próximo ou uma separação. São eventos carregados de sentimento negativo, mas se ao mesmo tempo tiverem eventos positivos, há um contraponto e um equilíbrio. Esses momentos são importantes também para mostrar para a criança que está crescendo, para o adolescente e para o adulto que a vida da gente é cíclica: haverá momentos mais positivos, outros mais negativos. Muitas vezes, os positivos te preparam também para enfrentar os negativos. Então, quando pensamos no desenvolvimento das memórias afetivas, estamos falando basicamente no desenvolvimento de uma contenção para que as pessoas sejam capazes de entender o quanto isso pode equilibrar os momentos negativos.
Neste tempo de pandemia, muitos pais estão tendo a oportunidade de ficar mais tempo com seus filhos. Como propiciar momentos que fiquem gravados de forma positiva e afetiva para as crianças?
Às vezes, os pais pensam ‘Ah, eu vou fazer isso porque a criança vai gostar’, mas a criança não interage e a experiência não é legal. Isso ocorre porque os pais esquecem de pensar que é muito importante observar a criança antes de propor a situação. Posso imaginar que para o meu filho vai ser muito legal aprender a fazer um bolo comigo, mas pode ser que pare ele não seja interessante. Acontece dos pais fazerem algo, se debruçarem naquilo e depois ficarem frustrados porque talvez a criança não interagiu, não engajou na brincadeira. Então, fundamental prestar atenção e tentar proporcionar atividades que perceberam que as crianças gostam. Posso pensar que vai ser muito legal lavar o carro com a criança, mas ela acaba não curtindo e, talvez, goste muito mais de aprender a costurar, por exemplo. Às vezes a gente pensa que é legal fazer um cinema em casa, mas ela aprecie mais fazer um bolo ou ajudar a lavar o quintal. Os pais podem proporcionar várias atividades no sentido de demonstrar afeto, de demonstrar que está junto, jogar um jogo, fazer uma pintura. Mas é importante avaliar o que é prazeroso para a criança, o que ela entende que está sendo uma dedicação dos pais. A dica é ficar muito mais sob a percepção da criança para entender o que ela quer e o que ela gosta de fazer.
Quando tudo isso passar, provavelmente, os adultos irão se lembrar dessa época como um caos na economia e na saúde. Como você imagina que será essa lembrança para as crianças? De que forma os acontecimentos de hoje poderão impactar em suas memórias afetivas?
Alguns adultos podem, sim, se lembrar como um caos, mas para a criança vai depender de como os pais estão passando esse período. Se eles passarem insegurança, ansiedade, entenderem que muitas situações acontecem e não tem muito mais o que a gente fazer, as crianças levarão essas recordações. O ideal é ter em mente que, já que essa é a realidade, vamos fazer com que ela seja vivida da melhor forma possível. Quanto mais os adultos souberem lidar com a incontrolabilidade da situação, mais fácil vai ficar para as crianças. Agora, se os adultos realmente ficarem apavorados, transmitindo medo, é disso que elas vão se lembrar. Já temos visto algumas crianças vindo para a terapia com queixa de ansiedade e até mesmo de transtorno obsessivo compulsivo. Temos recebido casos assim porque justamente depende de como os pais estão falando sobre esse momento com a criança. Muitas estão, obviamente, entediadas, não aguentam mais ficar em casa, mas a aceitação do que está acontecendo e a apresentação de estratégias de enfrentamento é o que vai ser o diferencial. A nossa vida normal agora é o que a gente está vivenciando e como não temos como saber como vai ser daqui para frente, vamos viver o hoje da melhor forma possível.
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Peixe
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